Voracidade arrecadatória e a nossa conta de luz
O desenvolvimento é prejudicado pela insegurança jurídica de nosso complexo e injusto sistema tributário.
13/11/2013

Há muitos anos a política tributária no Brasil vem sendo pautada pela necessidade de elevar a arrecadação. As exigências da Constituição de 1988 e o equilíbrio fiscal impunham essa necessidade. É fato, no entanto, que a busca desesperada por mais arrecadação provocou uma deterioração do sistema tributário.

É assim que se chegou a uma situação difícil de entender: a energia elétrica, insumo essencial para empresas e famílias, acaba sendo um dos produtos mais intensamente tributados na economia. O setor elétrico representa apenas 2,2% do Produto Interno Bruto, mas responde por uma proporção muito maior de impostos: a conta de luz contribui com 5,2% da arrecadação do PIS/Confins e com 8,4% do ICMS.

À medida que a carga tributária foi sendo elevada ficou cada vez mais claro que o melhor caminho para assegurar o equilíbrio fiscal é disciplinar os gastos públicos. Claro para todos, mas não para nossos governantes. Os governos das três esferas - federal, estadual e municipal - pouco têm feito para reduzir a carga tributária brasileira, muito elevada quando comparada à de outros países com nível de desenvolvimento compatível, o que compromete a competitividade.

Torna-se cada vez mais evidente que o desenvolvimento econômico é prejudicado pelos custos, distorções e insegurança jurídica de nosso complexo, disfuncional e injusto sistema tributário.

Não é mais possível ignorar o problema. É preciso ordenar o sistema tributário por meio de reformas pautadas em princípios e na contenção da expansão dos gastos dos governos.

Mas isto não é o que temos observado. Os fiscos têm adotado interpretações frágeis (ou mesmo insustentáveis) para maximizar a arrecadação de curto prazo, distorcendo a lógica da tributação.

O Congresso discute a reforma do ICMS, mas o processo segue emperrado devido ao impacto diferenciado da reforma tributária sobre os Estados. Alguns setores do governo federal tentam promover mudanças, mas quando tais mudanças afetam a arrecadação federal, como no caso do PIS/Cofins, o tema é relegado a segundo plano.

Dois exemplos recentes ilustram os absurdos da tributação sobre a energia elétrica.

Em 2013, o governo federal alterou o esquema de subsídios que mantêm os descontos para irrigação, água, esgoto, saneamento etc. Anteriormente os descontos para esses consumidores eram compensados pela elevação da tarifa dos demais consumidores da mesma concessionária de distribuição. Na nova sistemática, a cobertura dos descontos passa a ser feita por meio da CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), encargo cobrado de todos os consumidores do país. O efeito líquido da mudança será nulo em termos da receita agregada recolhida por todas as concessionárias porque a medida apenas redistribui o ônus dos descontos de forma mais equânime entre todos os consumidores no país.


No entanto, alguns fiscos estaduais já têm indicado que a transferência de recursos da CDE às concessionárias será tributada. Com isso, os fiscos estaduais passariam a tributar não apenas as cotas de CDE incluídas nas faturas dos consumidores, mas também os recursos transferidos de uma concessionária para outra concessionária via CDE, o que configura bitributação.

Os fiscos estaduais poderão argumentar que não se trata de bitributação porque parte dos recursos advém da União. De fato, nesse ano o Tesouro vem fazendo grandes aportes na CDE por meio da colocação direta de títulos de dívida em favor da CDE. Porém, esta é uma medida "tapa-buraco" temporária, restrita ao valor dos créditos a receber de Itaipu: quando for exaurida essa fonte de recursos, a CDE voltará a ser financiada pelas cotas anuais cobradas dos agentes do setor elétrico porque a legislação não prevê recursos adicionais provenientes da União.

A bitributação é inconstitucional, mas até que a questão seja pacificada nos tribunais os fiscos estaduais continuarão usando a tática para se apropriar de recursos.

Já é hora de os Estados enfrentarem a raiz de seu principal problema: a corrosão de sua base de tributação gerada pela guerra fiscal. Se os Estados passarem a tributar todos os produtos de forma mais equânime a base de arrecadação será ampliada, o que permitirá maior arrecadação com menores alíquotas. É o que o Projeto de Resolução do Senado 01/2013 buscava alcançar por meio da redução das alíquotas interestaduais do ICMS, o que deslocaria a maior parte da arrecadação do ICMS dos Estados produtores para os Estados consumidores. Isso reduziria a guerra fiscal e beneficiaria a arrecadação de todos Estados no longo prazo, mas a reforma não avança porque alguns senadores insistem em buscar benefícios adicionais para os seus Estados à custa dos outros.

O outro exemplo de voracidade arrecadatória está na esfera da União, que já abocanha 70% da arrecadação tributária nacional, mas insiste em adotar as mesmas práticas. Recentemente a Receita Federal sinalizou que pretende exigir pagamento de IR (Imposto de Renda) e CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) sobre as indenizações pagas aos concessionários pela reversão dos ativos de geração e transmissão à União, fenômeno derivado da Medida Provisória 579/2012, depois convertida na Lei 12.783/2013, e que produziu grande perda de valor para as concessionárias.

A sinalização acima da Receita Federal configura uma explícita quebra de expectativas, pois a tributação de IR e CSLL faria com que o pagamento líquido da indenização fosse inferior ao valor dos ativos ainda não depreciados e amortizados. Diferentemente da tarifa, a indenização não prevê a cobertura de tributos.

Novamente, trata-se de uma postura insustentável que será levada aos tribunais mas, até que haja a decisão final, o governo federal usará este artifício para postergar o desembolso líquido de muitos milhões de reais por alguns anos.

A voracidade tributária míope deteriora a confiança dos empreendedores e a atração de investimentos em infraestrutura. Se o sistema tributário continuar a ser baseado em demandas e pressões de curto prazo não será possível construir um país mais próspero e mais justo.

 

Claudio J. D. Sales e Richard Hochstetler são do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br). Fonte: Valor Econômico.