Consumidor pode pagar duas vezes por térmicas
APINE NA MÍDIA - Leilão de usinas previstas na Lei da Eletrobrás abre nova polêmica 23/08/2022 Valor Econômico - Planejado para 30 de setembro, dois dias antes das eleições, o leilão das primeiras usinas térmicas a gás natural incluídas como “jabutis” na lei de privatização da Eletrobras abriu uma nova controvérsia no setor elétrico. Parte do mercado critica as diretrizes estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia (MME) para o leilão. Associações e empresas de energia, como Abrace (entidade que reúne a indústria) e Engie Brasil (uma das maiores geradoras do país), pedem mudanças. Elas argumentam que os consumidores vão pagar duas vezes pela mesma energia caso as regras permaneçam como estão. Serão contratados 2 mil megawatts (MW) nas regiões Norte e Nordeste (Maranhão e Piauí), com entrega a partir de janeiro de 2027 e de 2028, respectivamente. É consequência de emenda imposta pelo Congresso para aprovar medida provisória da Eletrobras, convertida em lei no passado, que prevê 8 mil MW em termelétricas a gás. Quase todas as usinas precisarão ser instaladas em locais onde hoje não há suprimento do insumo, o que provocou grande polêmica na tramitação da MP. Parlamentares têm buscado aproveitar outros projetos de lei para dar subsídios à construção de gasodutos. A cizânia agora se dá em torno das regras do leilão, que foram definidas em portaria normativa do MME. Os leilões podem contratar energia com ou sem lastro, dependendo das necessidades do sistema elétrico no momento. O lastro corresponde à garantia física de uma usina ou de um conjunto de usinas. Muitas hidrelétricas, por exemplo, produzem, por diferentes motivos, efetivamente menos energia que o esperado. O governo precisa, então, contratar empreendimentos para servir como uma reserva do sistema e “recompor” o lastro. As regras do leilão foram desenhadas com base em uma nota técnica da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal de planejamento, publicada em abril deste ano e intitulada “Estudos para a Licitação de Expansão da Geração”. No fim da década, segundo a publicação, haverá um déficit de 2,2 mil MW médios entre a garantia física “de papel” (quanto o conjunto de usinas diz que poderá gerar) e a garantia física “real” (quanto elas estarão realmente produzindo). Para tapar esse buraco, contrata-se a energia de reserva. E aí nasce a nova discórdia: o MME definiu que o leilão deve ser sem lastro. Ou seja, as usinas térmicas vão entregar energia a partir da data estabelecida nos contratos (2027 e 2028), mas não entrarão no cálculo para fins de “recomposição do lastro” - quanto o sistema pode, de fato, gerar. O custo será rateado por todos os consumidores do país, por meio de um encargo pago nas tarifas. Resultado: mais energia, em outros leilões, precisará ser contratada com lastro e para atender essa finalidade - suprir o déficit de 2,2 mil MW médios entre a garantia física “de papel” e a garantia física “real”. As térmicas exigidas pela lei de privatização da Eletrobras vão ficar, na prática como uma “reserva da reserva”. A insatisfação de agentes do setor ficou evidente na consulta pública aberta pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que acaba de ser concluída e recebeu três dezenas de contribuições para o edital do leilão. “Tal definição [o leilão sem lastro] faz com que o consumidor, dentre outros pontos, seja duplamente penalizado, pois deve pagar por toda essa energia por meio do novo encargo setorial, e ainda teria que contratar o mesmo montante de energia no mercado, pagando então duas vezes pelo mesmo produto”, disse a Abrace em sua manifestação. Para a Abrace, também houve erro da EPE ao desconsiderar ou minimizar os seguintes fatores em suas estimativas: 1) a geração distribuída, com painéis fotovoltaicos no telhado de residências e estabelecimentos comerciais, tem crescido em ritmo surpreendente; 2) o mercado livre, com projetos eólicos e solares, também tem apresentado franca expansão; e 3) as projeções de crescimento da economia e da demanda por energia frequentemente decepcionam. A Engie e a Apine, associação que representa as principais geradoras de energia hidrelétrica do país, foram na mesma linha. “A EPE, ao projetar a expansão do sistema, desconsiderou as usinas que solicitaram outorga e ainda não foram autorizadas, sendo que essas usinas totalizam um potencial muito expressivo para serem desconsideradas”, afirmou a Engie. “Não incluir ao menos parte disso na expansão projetada pode indicar um crescimento de oferta muito aquém do que irá, de fato, ocorrer. Soma-se a isso uma expectativa muito otimista de crescimento da carga, sinalizando uma demanda que não também deve ocorrer. Só esses dois ajustes já poderiam resultar em conclusões muito diferentes às apresentadas inicialmente pela EPE, ao ponto da decisão do MME ser oposta àquela que foi tomada.” O diretor de energia elétrica da Abrace, Victor Iocca, afirma que a associação deve enviar ofício ao ministério listando esses pontos de divergência nas estimativas e fazendo um apelo para que o leilão ocorra com lastro. Engie e Apine também protocolaram, na Aneel, pedido para que as novas usinas termelétricas a gás entrem no cálculo de garantia “real” do sistema. Ex-diretor do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e presidente da recém-criada Frente Nacional dos Consumidores de Energia, Luiz Eduardo Barata, vai além e cobra o adiamento do leilão. Para Barata, diante da iminência de um novo mandato presidencial e de uma nova legislatura, deve-se reabrir o debate em torno da necessidade de construção das térmicas, que ele critica. O Ministério de Minas e Energia afirma que foi “diligente” ao estabelecer as regras [ver abaixo]. Já EPE diz ser “importante deixar claro que a contratação de energia de reserva sem lastro comercial se aplica apenas ao corrente leilão”. MME diz que foi ‘diligente’ ao definir as regras de contratação de energia - Ministério de Minas e Energia afirma que foi “diligente” ao estabelecer as regras para contratação de energia por meio de leilões como o previsto para o dia 30 de setembro. “Por meio do referido regulamento, o poder concedente permitiu que, na hipótese de os estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) não indicarem a necessidade de contratação de energia de reserva para o cumprimento dos critérios gerais de garantia de suprimento estabelecidos pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), a contratação deverá constituir lastro para venda de energia. A energia de reserva, até então, não poderia constituir lastro para revenda de energia”, disse o ministério, em nota. “Em outras palavras, o Ministério de Minas e Energia foi diligente ao prever no Decreto nº 11.042, de 2022, a possibilidade de contratação de energia de reserva constituindo lastro para revenda de energia, caso não haja a necessidade de recomposição de lastro sistêmico, conforme indicação dos estudos que vierem a ser realizados, pela EPE, para o cumprimento dos critérios gerais de garantia de suprimento. Nesse caso, a energia de reserva será alocada aos agentes de consumo”, afirmou. Acrescentou o ministério: “A identificação de uma necessidade de recomposição de lastro sistêmico indica um desbalanço entre as garantias físicas vigentes e as respectivas contribuições energéticas dos empreendimentos (garantias físicas simuladas). A recomposição da garantia física do sistema pode ser feita por meio da contratação de energia de reserva, com vistas a manter a segurança no fornecimento de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional”. “Importante ressaltar, ainda, que a avaliação da necessidade de recomposição de lastro sistêmico será atualizada a cada certame, permitindo que a energia contratada em futuros leilões constitua lastro para revenda.” Quanto às premissas usadas em sua publicação, a EPE disse ser “importante deixar claro que a contratação de energia de reserva sem lastro comercial se aplica apenas ao corrente leilão”. “Em relação às projeções de expansão da geração distribuída, a EPE trabalha com transparência, por meio de modelo e dados disponibilizados ao público. [...] No que tange à ampliação do parque gerador, sobretudo à expansão por meio do mercado livre, a EPE utiliza os melhores dados disponíveis, inclusive aqueles publicados pela Aneel, a respeito do ritmo de outorgas e condições de viabilidade dos empreendimentos.” Por Daniel Rittner |
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