Experiências internacionais mostram que a interconexão entre sistemas elétricos aumenta a segurança energética, reduz custos e favorece a transição para matrizes mais limpas
Opinião: Rui Altieri – Diretor Presidente da Apine
Valor Econômico – 22.08.2025 | A exportação de energia elétrica para países vizinhos é uma oportunidade estratégica para o Brasil transformar desperdício em receita, beneficiar consumidores, reforçar a competitividade dos geradores e contribuir para o uso mais racional de seus recursos naturais. No caso das hidrelétricas, um dos maiores potenciais ainda pouco aproveitados é a chamada Energia Vertida Turbinável (EVT) – água que poderia gerar energia, mas que acaba sendo liberada pelos vertedouros sem aproveitamento econômico.
Grande parte da EVT ocorre quando há sobra de água nos reservatórios das hidrelétricas, que não pode ser armazenada e, ao mesmo tempo, a demanda interna ou limitações do sistema impedem o aproveitamento pleno do potencial de geração. Ainda que essa condição não se mantenha o tempo todo, a exportação para países vizinhos permitiria utilizar essa energia excedente em horários ou dias específicos, como fins de semana, transformando-a em carga efetiva e receita para o país. Quando não houver disponibilidade de EVT, as exportações podem ser complementadas por outras fontes, assegurando continuidade no fornecimento e previsibilidade para os países importadores.
Mesmo sem ter sido um ano de grande excedente hidrelétrico, 2025 registrou volumes relevantes de EVT. Entre janeiro e julho, a média foi de 3.648 MWmed – energia suficiente para abastecer, durante um mês, mais de 25 milhões de residências com consumo médio de 100 kWh/mês – com picos de 5.679 MWmed em fevereiro e mínimos de 1.375 MWmed em julho. Trata-se de um montante significativo que, em grande parte, deixa de ser convertido em energia elétrica e, portanto, em valor econômico. Ainda assim, do total exportado no período, menos de 4% correspondeu a EVT, revelando o baixo aproveitamento do potencial disponível.
Para os geradores hidrelétricos integrantes do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) – sistema que compensa diferenças de produção entre usinas – a exportação da EVT representa receita adicional com custos operacionais marginais, já que utiliza a capacidade instalada sem exigir novos investimentos. Ao reduzir a EVT, o gerador se aproxima do nível de produção para o qual a usina foi projetada, recuperando receitas que embasaram o investimento inicial e que, na prática, deixam de ser obtidas quando a energia não é gerada. Esse aproveitamento contribui para mitigar impactos financeiros do MRE, reforçar o equilíbrio econômico do mecanismo, beneficiar todos os participantes e aumentar a previsibilidade de resultados.
O não aproveitamento da EVT significa renunciar a uma fonte de receita líquida para o setor. Cada megawatt médio exportado com base em energia hídrica vertida gera valores relevantes, que se perdem quando a água simplesmente passa pelo vertedouro. Considerando volumes como os registrados em 2025, a arrecadação potencial poderia alcançar cifras de centenas de milhões de reais ao longo do ano, recursos capazes de reduzir encargos, fortalecer as finanças públicas e beneficiar consumidores.
Os consumidores regulados também se beneficiam, pois parte da geração hidrelétrica – como as usinas em regime de cotas e Itaipu – tem seus custos incorporados às tarifas das distribuidoras e, portanto, repassados a todos os consumidores do mercado regulado. Quando a EVT é exportada e gera receita, o valor arrecadado contribui diretamente para reduz custos tarifários, já que se trata da utilização de um recurso que, de outra forma, seria simplesmente desperdiçado.
O uso eficiente da EVT ainda pode ampliar a arrecadação da Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH) – valor pago pelas usinas hidrelétricas à União, aos Estados e aos municípios onde estão localizados os reservatórios. Mais geração significa mais receita para investimentos públicos em saúde, educação e infraestrutura, beneficiando diretamente as populações que convivem com os empreendimentos.
Do ponto de vista ambiental, a exportação de EVT reforça a imagem do Brasil como potência verde e contribui para a integração energética da América do Sul. Ao enviar energia limpa para países vizinhos, o país ajuda a reduzir a necessidade de geração a partir de combustíveis fósseis, promovendo ganhos regionais em termos de emissões e alinhando-se às metas globais de descarbonização.
Além do aspecto ambiental, há também um componente estratégico relevante: a possibilidade de aprofundar a integração energética regional, fortalecendo os laços do Brasil com países vizinhos e criando condições para acordos de longo prazo que tragam estabilidade e previsibilidade a todos os envolvidos. Experiências internacionais mostram que a interconexão entre sistemas elétricos aumenta a segurança energética, reduz custos e favorece a transição para matrizes mais limpas.
Para que esse potencial se concretize, contudo, são necessários ajustes regulatórios. A previsibilidade da disponibilidade, a adequação dos preços ao mercado e a equalização das garantias financeiras entre diferentes fontes de geração são condições essenciais para ampliar o aproveitamento da EVT. Nesse contexto, é fundamental reconhecer a complementariedade entre diferentes fontes de geração: a EVT representa uma oportunidade de exportação de energia limpa e de baixo custo, enquanto outras tecnologias garantem a segurança de fornecimento contínuo e previsível, assegurando estabilidade aos contratos firmados com países vizinhos.
A valorização da EVT também deve ser entendida como parte de uma estratégia mais ampla de fortalecimento das hidrelétricas. Ao maximizar as receitas de empreendimentos já existentes, cria-se um estímulo à expansão dessa fonte, que continua a desempenhar papel central na matriz elétrica brasileira. Além de oferecer flexibilidade operativa fundamental para a integração de fontes renováveis variáveis, os reservatórios hidrelétricos prestam relevantes serviços ambientais e sociais, ao contribuírem para a segurança hídrica, a resiliência climática e os os usos múltiplos da água.
Reconhecer e remunerar adequadamente esses atributos é essencial para assegurar a atratividade de novos investimentos, estimular a continuidade da expansão hidrelétrica e consolidar a liderança do Brasil como provedor de energia limpa, confiável e sustentável para toda a região. A EVT, nesse contexto, também reforça a previsibilidade regulatória do do setor, ao alinhar ganhos econômicos e ambientais de forma transparente, fortalecendo a confiança dos agentes e criando bases mais sólidas para o planejamento de longo prazo.
Rui Altieri é presidente da Associação Brasileira de Produtores Independentes de Energia (Apine)